Por Texto: Bruno Fonseca, Rafael Custódio | Colaboração: Mariama Correia
Aconteceu dentro de casa, por um conhecido. O assassinato de Julia Nicoly Moreira da Silva, técnica de enfermagem, em julho de 2023, infelizmente se somou a um dado que voltou a crescer no Brasil no último ano: ao menos 145 pessoas trans foram mortas no país de acordo com levantamento inédito da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado nesta segunda, 29 de janeiro. O número leva à média de mais de um assassinato a cada três dias. Em 2022, o total de assassinatos foi de 131, cerca de 10% a menos.
Com 34 anos na época do crime, Silva representa alguns dos perfis mais comuns de vítimas no Brasil, segundo o levantamento da Antra. A maioria são de mulheres trans como ela. Quase 80% não chegam a ter 35 anos de idade. E a maior parte dos crimes acontecem com uso excessivo de violência e requintes de crueldade, que foi o caso de técnica de enfermagem.
O crime foi investigado pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense como feminicídio. O suspeito, de 19 anos, foi preso um mês após matar Silva, com a ajuda de um adolescente que na época tinha 17 anos. Na denúncia, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) destacou que “o crime foi praticado por motivo fútil, uma vez que o denunciado foi impulsionado pelo ódio nutrido pela vítima em razão desta ser transexual”.
Procurada pela Pública, a Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que “diligências seguem em andamento para prender o outro criminoso envolvido no crime” Leia a nota na íntegra aqui.
Este foi o 7º relatório divulgado pela Antra, que reúne dados de assassinato de pessoas trans desde 2017. O levantamento é feito a partir de dados governamentais, como o Disque 100 e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde, órgãos de segurança pública, processos judiciais e casos publicados em veículos jornalísticos.
Assassinatos de pessoas trans no Rio de Janeiro e Paraná dobram em um ano
O estado que mais registrou assassinatos de pessoas trans em 2023 foi São Paulo, com 19 casos. Contudo, Rio de Janeiro e Paraná se destacam entre os que tiveram maior aumento de mortes desde 2022. Em ambos, o número de assassinatos dobrou de um ano para o outro.
No Rio, onde vivia Julia Nicoly Moreira da Silva, foram registrados 16 homicídios no ano de 2023, contra oito em 2022.
Questionado sobre quais são as políticas públicas disponíveis à população travesti, trans e não-binária, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) respondeu que atua na promoção e garantia dos direitos da população LGBTQIAP+ por meio de programas sociais. “O Rio Sem LGBTIfobia conta atualmente com 20 Centros de Cidadania LGBTI, que oferecem todo o suporte necessário com atendimento social e psicológico, além de acompanhamento jurídico dos casos necessários”, destacou o órgão. Leia a nota completa aqui.
Gab Van, de 35 anos, é ativista e diretor da Marcha Trans e Travesti do Rio de Janeiro. Segundo ele, a falta de políticas públicas e o conservadorismo incentivado pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) colaboraram para o aumento do número de travestis e trans mortas no estado, pela incitação aos discursos de ódio.
“Não tem como falar que essas mortes [de pessoas trans e travestis] não aumentaram devido ao ódio que o último governo deixou”, disse o diretor, sobre o que pode explicar a ascensão no número de mortes do estado. “A maioria dessas mortes são na Baixada, em lugares afastados do centro e que a sociedade não é ensinada e nem educada [sobre identidade de gênero]”, completou Gab.
Para o ativista, a vulnerabilidade da comunidade trans, travesti e não-binária não está só ligada à falta de acesso às políticas públicas, mas também à forma como a pessoa se identifica. “Quando a gente fala ‘corpo vulnerável’, não estamos falando da galera [exclusivamente] pobre, mas uma pessoa que, por mais que tenha estudo ou alguma base, o corpo continua sendo vulnerável”, pontuou.
Já no Paraná, os homicídios de pessoas trans passaram de seis para 12 no período 2022-2023.
“O comitê da população LGBT do Paraná tem cobrado muito que se melhore a identificação de violência, então, talvez o resultado reflita essa melhora na identificação dos casos, mas, o Paraná tem um histórico muito grande de conservadorismo. O governador é um apoiador do ex-presidente Bolsonaro. Então, não é difícil imaginar uma relação desses dados com um discurso conservador e violento”, critica o coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), Fabian Algarte, que vive no Paraná.
A Pública procurou pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado, sob a gestão do governador Ratinho Junior (PSD), para responder sobre quais políticas públicas existem para reduzir as mortes de pessoas trans, travestis e não-binárias, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Os estados do Piauí e Rondônia também tiveram o dobro de mortes de um ano para o outro, mas ambos haviam registrado apenas um caso em 2022.
No Brasil, como um todo, a Antra registrou 36 homicídios de pessoas trans menores de 18 anos nos últimos 7 anos. Quase 80% das vítimas tinham menos de 35 anos de idade.
Além disso, a maioria das vítimas é de mulheres trans, e a média de pessoas trans negras assassinadas é de 78,7% do total.
De acordo com Gab Van, o Brasil é um país racista, o que reverbera no alto índice de mortalidade de pessoas trans pretas. Sobre o cenário fluminense, o ativista destaca: “O projeto de Segurança Pública do Rio de Janeiro é [de] matar jovens pretos, independente deles serem cis ou trans”.
Falta de dados públicos prejudica informação sobre violência contra pessoas trans
O aumento na quantidade de homicídios de pessoas trans, apontado pelo levantamento da Antra, contrasta com a previsão de que os homicídios como um todo no Brasil tiveram redução em 2023. Segundo projeção do Ministério da Segurança Pública, a quantidade de assassinatos no país caiu 6% em relação a 2022.
O relatório também aponta que há um vazio de dados de crimes contra pessoas trans no Brasil nas bases de órgãos públicos. “Como vem sendo insistentemente denunciado desde a primeira edição deste dossiê, a ausência de dados governamentais é um problema sério que precisa de atenção. Dados sobre essas violências seguem inexistentes ou insuficientes quando comparadas com o que é reportado pelos canais de notícias”, destaca o texto.
Apesar dos dados de crimes, o relatório também destaca como avanços a recriação do Conselho Nacional pelos direitos da população LGBTQIA+, um novo grupo de trabalho no Ministério da Saúde para revisar a política de saúde para a população trans, a criação de uma estratégia nacional de enfrentamento à violência contra pessoas LGBTQIA+, dentre outras ações. Além disso, neste ano de 2024, são comemorados 20 anos de visibilidade trans no país.