Por Rafael Oliveira, Giovana Girardi
Amplamente criticada por organizações de defesa do meio ambiente, a emenda parlamentar inserida em uma Medida Provisória (MP) do governo Bolsonaro que afrouxa a proteção da Mata Atlântica foi defendida pelo Ministério de Minas e Energia (MME) do governo Lula antes da votação que aprovou o texto na Câmara, realizada no fim de março.
A Agência Pública teve acesso a uma nota técnica produzida pela Assessoria Especial de Meio Ambiente da pasta comandada por Alexandre Silveira (PSD), feita a pedido da assessoria parlamentar do órgão. No documento, assinado pela chefe do departamento, o MME afirma que a proposta “visa dar uma maior agilidade ao procedimento de autorização de supressão de vegetação, sem descuidar da preservação do bioma mata atlântica”.
Para a pasta, a alteração se justifica “pelo amadurecimento dos órgãos ambientais estaduais” desde a promulgação da Lei da Mata Atlântica, em 2006. O documento também afirma que a proposta vai ampliar “as decisões do poder local sem prejuízo à proteção ambiental” e vai trazer “maior segurança jurídica” para empreendedores, citando especificamente as linhas de transmissão.
A MP 1.150/2022 tratava originalmente do adiamento do prazo do Programa de Regularização Ambiental (PRA) – instrumento previsto no Código Florestal –, mas recebeu emendas durante a tramitação na Câmara e acabou sendo aprovada na Casa com a inclusão de tópicos que não têm nenhuma relação com seu escopo original – são os chamados “jabutis”.
O texto precisa passar agora por votação no plenário do Senado, o que está previsto para ocorrer nesta terça-feira (16). Caso aprovado, pode promover uma série de mudanças na Lei da Mata Atlântica, especialmente relacionadas à implementação de empreendimentos lineares, como linhas de transmissão de energia elétrica, gasodutos e sistemas de abastecimento público de água.
O “jabuti” prevê que essas obras poderão desmatar sem a necessidade de compensação, não precisarão realizar estudo prévio de impacto ambiental (EIA) para conseguir a licença de supressão de vegetação e também não serão obrigados a fazer a captura, coleta e transporte de animais silvestres, para garantir a realização do afugentamento dos animais.
O texto aprovado na Câmara permite derrubar vegetação primária e secundária em estágio avançado de regeneração “em caso de utilidade pública e interesse social”. Além disso, transfere exclusivamente aos governos municipais – usualmente mais brandos na gestão ambiental – competências que antes eram compartilhadas com os governos estaduais em relação ao corte e exploração de vegetação e permite que a compensação ambiental, quando ela couber, possa ser feita em outra cidade mais distante.
“É uma liberação geral, uma flexibilização na lei para obras como, por exemplo, de linhão de energia elétrica, sem ter de respeitar a Lei da Mata Atlântica. Eles poderão passar por matas primárias e em estado avançado de regeneração sem ter de apresentar outras alternativas locacionais de traçado e sem ter de fazer a compensação ambiental”, afirma Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica.
“Querem que a compensação por supressão de vegetação, hoje proibida na Mata Atlântica, seja feita somente em área de preservação permanente. Isso não é compensação”, complementa.
O entendimento de especialistas é que a medida poderá aumentar a perda de vegetação no bioma que já é o mais desmatado do Brasil. Cálculos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em conjunto com a SOS Mata Atlântica estimam que restam hoje pouco mais de 12% de remanescentes da floresta original que cobria toda a costa brasileira.
De acordo com fontes ouvidas pela reportagem, o Ministério de Minas Energia estaria atuando para facilitar obras especialmente de linhões. A necessidade de encontrar alternativas locacionais de modo a não afetar alguns tipos de vegetação da Mata Atlântica estaria encarecendo as obras.
Procurada pela reportagem, a pasta não se pronunciou até a publicação deste texto. Ele será atualizado se houver uma resposta.
Os “jabutis”
A MP 1.150/2022 foi apresentada no apagar das luzes do governo de Jair Bolsonaro (PL), em 23 de dezembro do ano passado. Originalmente, a medida fazia apenas uma alteração no Código Florestal (Lei 12.651/2012), adiando o prazo para que donos de imóveis rurais se cadastrassem no Programa de Regularização Ambiental (PRA), que prevê a restauração de áreas desmatadas antes de 2008 e promove regras mais flexíveis e anistia multas ambientais nesse período para quem se cadastrar.
Com a redação final dada após as emendas, porém, o escopo da medida se ampliou, abrangendo outras leis além do Código Florestal. O relator da MP 1.150/2022, aprovada como Projeto de Lei de Conversão (PLV) 6/2023, foi Sérgio Souza (MDB-PR), que presidiu a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) entre 2021 e 2022.
Em relação ao próprio Código Florestal, a medida foi aprovada com uma redação que adiou pela 6ª vez os prazos não só para adesão ao PRA, mas também para o mero registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – obrigação estabelecida pelo Código Florestal de 2012 –, mudanças que já eram criticadas por ambientalistas
O texto que partiu do governo Bolsonaro dilatava em mais 180 dias o prazo para a adesão dos produtores com passivo ambiental – ou seja, que haviam desmatado irregularmente e precisavam fazer a recuperação dessas terras – ao PRA. Já na Câmara ficou estabelecida que os produtores terão o prazo de um ano para responder após serem convocados pelo órgão competente. A convocação, no entanto, não tem prazo para ocorrer. Isso, na prática, pode prorrogar a efetivação do PRA indefinidamente, beneficiando produtores rurais com áreas desmatadas irregularmente.
“O prazo ia ter de ser adiado mesmo, uma vez que já tinha vencido. Até hoje, mesmo depois de 11 anos da aprovação do novo Código Florestal, nem 1% dos proprietários que precisam fazer a regularização assinaram o compromisso. Mas da forma como foi feito, isso pode não acontecer nunca. Se for esperar pela convocação pelos órgãos ambientais de cada produtor, um a um, vai ser uma prorrogação eterna”, comenta Roberta del Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal.
No caso da obrigatoriedade de registro no CAR, o prazo foi ampliado para o final de 2023, em casos de imóveis maiores que quatro módulos fiscais, ou até o final de 2025, para imóveis menores.
O “jabuti” mais polêmico, que faz alterações na Lei da Mata Atlântica, foi apresentado pelo Energia da Câmara dos Deputados e também é membro da FPA. A maior parte das deputado Rodrigo de Castro (União Brasil/MG), que é presidente da Comissão de Minas e doações recebidas pelo parlamentar nas últimas eleições vieram de empresários do setor de energia.
Na justificativa para a emenda, o parlamentar afirma que as alterações “visam acelerar investimentos na área de infraestrutura para equipamentos fundamentais, como rodovias, linhas de transmissão e gasodutos”.
Outro “jabuti” colocado na MP, proposto pelo deputado Léo Prates (PDT-BA), inclui um novo artigo no Código Florestal excluindo a possibilidade de que unidades de conservação situadas em áreas urbanas possuam uma zona de amortecimento e corredores ecológicos. A mudança também foi defendida pela nota técnica do Ministério de Minas e Energia.
O documento afirma que a alteração é uma “solução para a complexidade e morosidade do processo de licenciamento ambiental” nessas situações e “pode contribuir para o incremento dos custos de investimentos planejados para compensação e implantação dos empreendimentos ou até mesmo de favorecer a sua inviabilização”.
O terceiro jabuti aprovado foi proposto pelo deputado João Carlos Bacelar (PL-BA) e recebeu posicionamento neutro do MME. A mudança sugerida por Bacelar, caso sancionada, vai dispensar a necessidade de consulta a conselhos estaduais de meio ambiente sobre as diretrizes que estabelecem vegetação protetiva nas margens dos rios e outros corpos d’água, quando localizadas em áreas urbanas.
“Orientação dúbia” no Congresso
Nas notas taquigráficas da sessão, disponíveis no site da Câmara, a transcrição das falas dos deputados Airton Faleiro (PT-PA) e Alencar Santana (PT-SP) mostra que a orientação tanto da Federação PT/PCdoB/PV quanto do governo foi de voto ‘sim’. Ambos ressaltaram que havia divergências em relação às emendas e que o governo não se comprometia com a sanção dos “jabutis”. Os únicos partidos a orientarem a votação contra o relatório foram o PSB, o PDT e a Federação PSOL/Rede.
De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, a aprovação do texto da MP na Câmara teria sido firmada após acordo entre líderes do Centrão e do governo Lula, com a Câmara concordando em não derrubar um possível veto presidencial.
Em entrevista à Pública, o deputado petista Nilto Tatto (SP), que coordena a Frente Parlamentar Ambientalista, confirmou que houve uma orientação dúbia por parte do governo. Por um lado, o Ministério de Minas e Energia era favorável à aprovação da MP com as emendas, enquanto o Ministério de Meio Ambiente defendia que fosse aprovada apenas a prorrogação do prazo para o CAR.
*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.