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Ameaça de Bolsonaro a repórter faz parte de estratégia de criar “inimigo comum”, diz diretor da Repórteres sem Fronteiras

Para Emmanuel Colombié, diretor para a América Latina da organização internacional, poucos governantes no mundo ameaçaram jornalistas diretamente: “Os únicos lugares do mundo onde isso acontece são ditaduras e países autoritários”

Emmanuel Colombié é diretor do escritório para a América Latina da Repórteres sem Fronteiras (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Por Rafael Oliveira

Em dezembro do ano passado, Jair Bolsonaro disse a um jornalista que ele tinha “uma cara de homossexual terrível”. Em fevereiro, fez insinuações sexuais contra a repórter Patrícia Campos Mello. No último domingo (23), as recorrentes hostilidades do presidente da República contra a imprensa e seus profissionais alcançaram um novo patamar. “Tenho vontade de encher a tua boca com uma porrada”, afirmou o mandatário após ter sido questionado sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle no valor de R$ 89 mil – pergunta que continua em aberto.

“É um comportamento completamente inadmissível por parte de um presidente eleito”, afirma Emmanuel Colombié, diretor do escritório para a América Latina da Repórteres sem Fronteiras (RSF), em entrevista para a Agência Pública. “Não é novo que o presidente ataque a imprensa, mas é a primeira vez, no monitoramento da RSF, que o próprio presidente faz uma ameaça concreta, uma ameaça física contra um jornalista. Isso é inédito e sem precedentes.”

Para Colombié, os ataques à imprensa feitos por Bolsonaro seguem “uma estratégia definida e cada vez mais bem estruturada”. “Não são ataques pontuais, é um sistema organizado de ataques que começa com o próprio presidente, logo chegam os filhos e a própria família, logo vêm os ministros próximos ao presidente e logo vem a base de militância. É um sistema organizado e estruturado que tenta semear desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas, destruindo a credibilidade dos jornalistas, construindo pouco a pouco a imagem de um inimigo em comum”, explica o diretor da RSF. “O objetivo implícito por trás é evitar prestar contas à sociedade, na tentativa de manter o maior controle do debate público”.

A organização é responsável pela Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa, que analisa 180 países em relação ao seu nível de liberdade de informação. No ranking divulgado em 2020, o Brasil caiu mais duas posições, posicionando-se na 107ª colocação. Segundo a classificação da RSF, a situação piorou em boa parte do mundo.

Emmanuel Colombié é diretor do escritório para a América Latina da Repórteres sem Fronteiras (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Emmanuel Colombié é diretor do escritório para a América Latina da Repórteres sem Fronteiras
(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Leia a entrevista na íntegra:

Como você enxerga e avalia um ataque verbal tão direto quanto o que foi dito pelo presidente Bolsonaro nesse fim de semana?

É um comportamento completamente inadmissível por parte de um presidente eleito. É uma fala nojenta e algo que precisa ser condenado pela sociedade em geral, mas também pelos poderes Legislativo e Judiciário. Esperamos uma reação das instituições brasileiras porque não podemos deixar passar esse tipo de coisa.

Não é novo que o presidente ataque a imprensa, mas é a primeira vez, no monitoramento da Repórteres sem Fronteiras, que o próprio presidente faz uma ameaça concreta, uma ameaça física contra um jornalista. Isso é inédito e sem precedentes. Por trabalhar em uma organização internacional, [posso dizer] que tem muito poucos elementos de comparação na história recente de presidentes que atacam tão brutalmente jornalistas de maneira pública. Os únicos lugares do mundo onde isso acontece são ditaduras e países autoritários. 

É inadmissível e importante denunciar e visibilizar esse tipo de ataque. Mais que agressividade, estamos passando agora a ameaças. Obviamente, essas ameaças podem se tornar reais porque a base de Jair Bolsonaro está sendo encorajada a atacar os jornalistas com base nesse tipo de declaração.

Antes eram hostilidades e comentários e desta vez é um passo à frente nas ameaças do presidente?

Os ataques do presidente são frequentes. Agora, sim, passou à frente por ser uma ameaça muito concreta. Esse discurso hostil e intimidador do Bolsonaro contra a imprensa vem incentivando a sua militância a assediar jornalistas nas redes sociais, inclusive, com ameaças de morte e agressões aos profissionais da imprensa e seus familiares. Então sim, podemos dizer que é um passo à frente. Infelizmente, não fomos surpreendidos, mas é uma coisa que de alguma forma marca uma nova etapa. É muito preocupante.

Que peso tem uma fala dessas, vinda da principal autoridade do país, para a população em geral? Isso pode deslegitimar o jornalismo de alguma forma?

Totalmente. Esses ataques à imprensa estão seguindo uma estratégia definida e cada vez mais bem estruturada. Não são ataques pontuais, é um sistema organizado de ataques que começa com o próprio presidente, logo chegam os filhos e a própria família, logo vêm os ministros próximos ao presidente e logo vem a base de militância. É um sistema organizado e estruturado que tenta semear desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas, destruindo a credibilidade dos jornalistas, construindo pouco a pouco a imagem de um inimigo em comum. É muito parecido com a estratégia do presidente Trump nos Estados Unidos. Ele está criando a imagem da imprensa como inimigo do povo, como inimigo em comum. O objetivo implícito por trás é evitar prestar contas à sociedade, na tentativa de manter o maior controle do debate público. Esse é o objetivo, é um método implementado desde a posse do presidente em janeiro de 2019.

Insultar, desmoralizar, estigmatizar, orquestrar humilhações públicas… A gente teve vários exemplos, no Palácio da Alvorada, de jornalistas que tentam cobrar e foram humilhados pelo presidente e pelos militantes que estão do lado. Desmoralizar jornalistas, no momento em que vão ser divulgadas as informações que vão ser contrárias aos interesses do governo e, sobretudo, aos interesses da família Bolsonaro, é um método. Esses ataques são sistematicamente reproduzidos pela família, que tem cargos eletivos, então é ainda mais estruturado e grave. É realmente um sistema organizado.

Como você avalia a reação da população e das instituições? A reação foi adequada ao tamanho do ataque e da ameaça?

Teve uma reação interessante e espontânea nas redes que contou com grandes figuras, jornalistas e tal. Muita gente da sociedade civil postando a mesma pergunta que foi feita pelo jornalista agredido. Foi sem precedentes essa reação espontânea após o ataque. Essa espontaneidade mostra que tem uma real mobilização e consenso contra esse tipo de fala do presidente.

Sobre as instituições, por enquanto, eu não vi processo judicial específico depois dessa fala. Já tem várias demandas de impeachment de várias organizações da sociedade civil, muitas delas estão mencionando a situação ligada à imprensa e a relação do governo com a imprensa. Tem iniciativas, a Repórteres sem Fronteiras, junto com outras organizações brasileiras como Intervozes, Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Artigo 19, Barão de Itararé, está trabalhando em colaboração para sensibilizar as instituições interamericanas sobre esse discurso de ódio, junto à relatoria especial de liberdade de expressão da OEA e das Nações Unidas. 

Agora, as próprias instituições brasileiras como o Judiciário e também o Congresso até agora não fizeram muita coisa para tentar impedir essa propagação do discurso de ódio. Sobre essa questão específica dos ataques da família Bolsonaro contra jornalistas, eu diria que as reações das instituições são insuficientes, para não dizer mais.

No levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), só no primeiro semestre deste ano o presidente fez mais de 240 ataques contra a imprensa, incluindo 32 ataques pessoais a jornalistas. Por que presidentes com tendências autoritárias costumam atacar a imprensa?

Na América Latina toda, tem muitos outros exemplos de presidentes autoritários que estão, de diferentes formas, censurando e tentando silenciar todo tipo de voz crítica e independente. O propósito é bastante simples: estão tentando controlar totalmente o debate público fazendo esses ataques e implementando métodos de censura, seja direta ou indireta.

No caso do Brasil, é importante dizer que, como esse sistema tem na base os militantes, são eles que vão transformar as falas e os ataques em coisas ainda mais graves, sendo ameaças de morte, manifestações onde tem agressões físicas até assassinatos de jornalistas, que no Brasil também é uma coisa que acontece. 

Isso tudo é incentivado pelo ambiente nojento no qual estamos evoluindo e no qual os jornalistas devem trabalhar.

Até mais no nível local, saindo um pouco da política federal, os jornalistas brasileiros que vão até o local denunciar a corrupção ou crime organizado são muito vulneráveis por visibilizar e denunciar a corrupção da classe política, econômica e religiosa. Representantes desses poderes se sentem ameaçados e atacam diretamente ou indiretamente ou fazendo demandas judiciais para silenciar as vozes críticas.

Essa situação é uma forma de destruição da democracia, ameaça diretamente o direito de liberdade de imprensa e a democracia brasileira, que é jovem e precisa ser fortalecida. 

Nós ficamos muito preocupados com esse governo.

Nesse caso do ataque do presidente Bolsonaro ao jornalista da Globo, a estratégia utilizada pela base foi pegar um trecho de um vídeo em que o Bolsonaro ataca o repórter e dizer que o jornalista o atacou antes, o que já é comprovadamente falso. Como lutar contra uma máquina política que não se importa em utilizar de mentiras e de distorções?

Olha, o tema das fake news é bem complexo, mas sabemos que, independente do campo político, todos os grupos de interesse vão usar métodos parecidos para propor uma narrativa. Para isso, eles são capazes de criar notícias falsas, inventar coisas para tentar convencer a audiência deles.

Agora, sobre esse aspecto especial, mesmo que a frase do jornalista fosse verdadeira, a gente não pode comparar a frase de um jornalista e uma declaração do presidente. 

Estamos falando do presidente da República, a figura mais alta do país. Mesmo que seja atacado ou insultado, ele tem que ter uma postura de presidente. A frase que ele diz é indigna. Mesmo se ele tivesse sido atacado, ele tem que manter a distância necessária para não responder. Ele tem uma grande responsabilidade ao representar o país. Ele é a voz do Brasil. 

Quando esse tipo de frase sai da boca do presidente do país, é inadmissível, é nojento, tosco. Não é novo, obviamente é chocante, mas, para organizações como as nossas, não é surpreendente, mas é mais um episódio nessa escalada da criação de um clima de desconfiança e de ódio.

“É um sistema organizado e estruturado que tenta semear desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas, destruindo a credibilidade dos jornalistas, construindo pouco a pouco a imagem de um inimigo em comum”, explica Emmanuel Colombié (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
“É um sistema organizado e estruturado que tenta semear desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas, destruindo a credibilidade dos jornalistas, construindo pouco a pouco a imagem de um inimigo em comum”, explica Emmanuel Colombié (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Há, então, uma institucionalização dessa máquina política baseada em desinformação?

É um tema complexo. Nós já sabemos que as informações falsas circulam muito mais rapidamente do que as verdadeiras. Com base nisso, tem muitos grupos de interesses privados, sejam políticos, econômicos etc., que vão aproveitar a credulidade para passar qualquer tipo de mensagem falsa para chegar ao objetivo.

Eu não posso dizer que tem dentro dos ministérios um sistema organizado, mas já sabemos, por exemplo, que existe o chamado “gabinete do ódio”. Tem filhos do presidente que coordenam atividades de propagação de notícias falsas e de ataques aos opositores da família e do governo. Não estou falando só de jornalistas, qualquer tipo de opositor pode ser alvo desse sistema organizado. Isso é uma realidade.

Agora, sobre fake news em si, tem debates nesse momento sobre como podemos controlar a propagação, compartilhamento e difusão de informações falsas. 

É um tema que vem sendo discutido, entrou no Congresso há pouco. Mas as primeiras propostas de lei que passaram pelo Senado não são satisfatórias, são muito preocupantes porque esse tipo de lei pode se tornar uma ferramenta de censura. Isso existe em muitos países, quem é o dono da verdade, quem é a figura que pode determinar que uma informação é falsa ou verdadeira.

A RSF se pronunciou várias vezes junto com outras organizações brasileiras, a gente denunciou as primeiras versões do texto, que foi validado pelo Senado, agora está na Câmara. É importante tomar o tempo necessário nesse debate para chegar em um texto que seja mais equilibrado e que leve também em consideração a participação da sociedade civil, das organizações nacionais e internacionais que trabalham sobre essa questão.

Não existe nenhum país onde a questão das fake news foi bem resolvida. Tem bons exemplos, tem exemplos ruins, mas é uma questão tão complexa que fazer isso de forma precipitada seria a pior coisa possível para o país.

Você considera que o caminho legislativo é um caminho válido para combater as fake news?

Sim, claro. Temos que confiar no trabalho das instituições, no trabalho do Congresso, é assim que funciona a democracia. Tem que fazer um trabalho de pedagogia. Eu assisti uma parte do debate no Senado, e acho que a maioria dos senadores não conhece muito bem o assunto. Isso é preocupante.

Agora que estamos entrando em campanha, eu diria que não é o melhor momento, porque, obviamente, os políticos vão querer acelerar e ter novas ferramentas para silenciar as vozes críticas através desse tipo de projeto de lei. Falta mais debate público sobre essa questão, até para chegar a um projeto satisfatório.

Você falou do gabinete do ódio. Há um financiamento dessa desinformação pela máquina pública e por empresas aliadas ao atual governo?

Sobre dinheiro público, temos que confiar na Justiça. Ela deveria conseguir determinar se existem realmente estruturas organizadas de propagação de ódio, de fake news, com dinheiro público. 

Agora, sobre a parte privada, já sabemos que existem em outros países do mundo, fundos que financiam desinformação. Grupos de interesse que podem ser políticos, econômicos, religiosos, e que estão usando dinheiro privado para estruturar campanhas de propagação de fake news, para chegar a um objetivo x, que pode ser a eleição de tal pessoa ou qualquer interesse. 

E nesse aspecto já temos exemplos nas últimas campanhas, pagas por empresas de propaganda que ajudaram a difundir notícias falsas sobre os candidatos, seja do Haddad, seja do Bolsonaro. Isso já foi demonstrado, que existem relações diretas entre políticos e empresas privadas, empresas de tecnologia também. 

Que medidas as organizações internacionais podem tomar em relação a essas ameaças?

O que a gente fez, por exemplo, esse ano, foi solicitar com outras organizações uma audiência pública com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA. A gente conseguiu, em março, apresentar perante os mais altos órgãos da OEA a situação da liberdade de imprensa no Brasil, especificamente no Brasil do presidente Bolsonaro. É importante dar visibilidade da situação fora do país, junto a esses órgãos.

A segunda coisa é que esses órgãos – falando especificamente na Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA – podem emitir medidas cautelares, que vão impor uma série de medidas aos países da OEA, de que o Brasil faz parte. É um caminho também. Aí tem uma visibilização e também uma coisa constrangedora, uma obrigação de adotar essas medidas, que podem ser medidas de proteção de jornalistas, por exemplo.

E uma das últimas coisas é o trabalho junto, por exemplo, ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Tem também a possibilidade de chegar ao TPI em situações que consideramos muito graves. 

Não estou dizendo que estamos preparando isso no Brasil, mas nós já fizemos esse tipo de denúncia para a situação de impunidade no assassinato de jornalistas no México. Aqui no Brasil, por enquanto não chegamos a isso, mas são caminhos que estamos explorando. 

A RSF tem status consultivo junto à ONU, então a gente consegue passar informações para esses órgãos e fazer com que haja uma pressão internacional. A pressão interna, considerando a postura do Bolsonaro, não é suficiente.

Este ano, o Brasil caiu mais uma vez na Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa, feita pela Repórteres sem Fronteiras. Há perspectivas de melhora?

Eu sou uma pessoa otimista no geral, mas eu não vejo como poderia ter uma melhora com essa Presidência, para ser sincero. 

A partir do momento em que temos um sistema organizado, em que no topo temos essa figura que todos os dias vai agredir, ameaçar, falar besteira, insultar, humilhar jornalistas, comunicadores e todos os tipos de pessoas que trabalham com direitos humanos, acho difícil essa situação melhorar. 

Agora, nessa classificação entram outros critérios que não dependem somente do governo. Tem também o sistema judiciário, quais são as armas para jornalistas se defenderam em nível judiciário, e também a pluralidade e a independência da mídia. O Brasil tem um problema de concentração de propriedade da mídia. 

E tem vários critérios que vão entrar. Alguns critérios poderiam ter uma melhora, mas, sem a vontade política do mais alto nível para melhorar a liberdade de expressão, não vejo como isso poderia ocorrer até o fim do mandato Bolsonaro. 

Qual é, hoje, a situação dos jornalistas fora dos grandes centros urbanos no Brasil? Quais os perigos que eles enfrentam?

É importante falar desses jornalistas e, sobretudo, comunicadores, blogueiros, radiocomunicadores. Geralmente são jornalistas independentes que trabalham para pequenas mídias, longe dos grandes centros urbanos, nas regiões rurais. Esses são particularmente vulneráveis e são com muita frequência atacados e ameaçados. Quando tem assassinatos de jornalistas no Brasil, acontece com radialistas de cidadezinhas perdidas, longe de tudo. 

Por que isso acontece? Porque eles estão denunciando publicamente a atuação dos governos locais, geralmente a corrupção dos governantes locais e de relações que podem ter com o crime organizado. E, por divulgarem essas informações de interesse público, por incomodarem essas pessoas que são localmente poderosas, eles são alvos de muitos ataques. E, por terem poucos recursos, esses jornalistas locais não têm capacidade de se proteger, não têm material de proteção suficiente, não fazem parte de redes de apoio e proteção, estão muito isolados. E, por estarem isolados, eles são alvos fáceis. É uma situação que é importante visibilizar.

Onde a situação preocupa mais no continente e de que maneira a situação nesses outros países se diferencia da brasileira?

Olha, temos uma série de países prioritários, o primeiro sendo o México, por ser o país mais perigoso talvez do mundo para jornalistas e onde teve no mínimo dez assassinatos nos últimos anos, por ano. No México, há um círculo vicioso que está na base do problema, que é a impunidade. Em 99% dos casos de jornalistas assassinados ou desaparecidos, os autores intelectuais não são encontrados e julgados. Isso gera também um clima de vulnerabilidade muito forte. 

Na região há países parecidos, como Guatemala e Honduras. A situação é parecida e são países menores onde há muito corrupção e onde cobrir essas pautas leva a ameaças e, às vezes, assassinatos de jornalistas e comunicadores. 

Agora, tem também países nos quais, por razões também políticas, o trabalho da imprensa independente é muito complexo. Há a Venezuela, onde a censura estatal é feroz. Onde o governo Maduro implementa, com ainda mais intensidade, nos últimos dois ou três anos uma série de medidas de censura muito eficientes, pouco a pouco silenciando todas as críticas. Há muitos métodos na Venezuela para censurar. A Comissão de Telecomunicação pode simplesmente cortar os sinais de rádios e TVs quando trazem muitas críticas. Sem falar nos cortes de internet organizados, sem falar das prisões arbitrárias de jornalistas, sem falar das agressões nas manifestações. 

Na Venezuela é muito pesado e tem, de alguma forma, algumas coisas semelhantes com o Brasil. A gente pode observar de maneira pouco isolada técnicas parecidas entre o governo Bolsonaro e o governo Maduro nesse desejo organizado de silenciar vozes críticas e de manipular a narrativa, para a imprensa independente e crítica se tornar o inimigo do povo, parecer que quer destruir a nação. 

A situação de Cuba também é pesada, menos violenta, mas em Cuba a própria imprensa privada é proibida pela Constituição. Então não há órgãos de imprensa escrita que não sejam aliadas ao regime castrista de Díaz-Canel. E os únicos que conseguem, cada vez mais, ainda bem, com a chegada progressiva da internet, se organizam nas redes, onde existe uma imprensa independente crescente. 

Em que outros países você considera que a situação se assemelha à brasileira?

Tem semelhanças com outros países que não são necessariamente autoritários. Por exemplo, os Estados Unidos de Donald Trump têm muitas semelhanças, até porque o Bolsonaro está reproduzindo atitudes do presidente Trump, que ele considera como um modelo. Toda essa nova onda de chamar a mídia de propagadora de fake news, de insultar, de desacreditar a imprensa publicamente foi implementada pelo próprio Trump, e todo mundo sabe que o Bolsonaro tem uma grande admiração por ele, então há um encorajamento em fazer a mesma coisa. 

Já falei da Venezuela, também, com essa vontade de colocar a imprensa como um inimigo comum. E a gente pode mencionar também países autoritários, como a Rússia ou Filipinas, onde o próprio presidente é capaz de insultar e ameaçar diretamente jornalistas durante coletivas de imprensa ou publicamente. 

Você considera que a situação da liberdade de imprensa na América e ao redor do mundo se deteriorou desde que você iniciou seu trabalho na RSF??

Eu diria que a situação na América e no mundo tem se deteriorado bastante nos últimos anos. Estamos observando uma crise geopolítica, com presidentes eleitos cada vez mais agressivos, com modelos autoritários. Temos uma crise tecnológica, com faltas de garantias democráticas com o problema das fake news. Uma crise democrática com polarização em muitos países do mundo, conflitos políticos e políticas repressivas. E também uma crise de confiança sobre o jornalismo em si, e cada vez mais um ódio direcionado aos meios de comunicação, junto com a crise econômica, uma precarização do jornalismo de qualidade. Todas essas crises afetam o futuro do jornalismo e afetam a liberdade de imprensa, e com o coronavírus se soma mais uma crise sanitária. 

Obviamente, temos situações de liberdade de imprensa distintas, na classificação mundial da RSF detalhamos isso. Temos na Europa condições muito mais favoráveis à liberdade de imprensa do que na América Latina, por exemplo. Na região da Ásia e do Pacífico, tivemos a pior deterioração da pontuação regional em 2020. Na maioria das regiões, temos poucos cenários otimistas. 

Acho que o coronavírus funcionou como uma espécie de revelador. A gente descobriu em vários países a cara dos dirigentes que aproveitaram o caos para aumentar o controle da informação, aumentar a censura e restringir o acesso à informação, que diz bastante sobre a necessidade de lembrar a importância do trabalho livre da imprensa, que possa trazer informações de interesse público em momentos tão delicados como o que estamos vivendo.

Colaboraram Raphaela Ribeiro e Julia Dolce

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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