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Com queda vertiginosa em investimentos na ciência e inovação, o que vamos perder?

Desenvolvimento, informação e saúde são alguns dos setores que podem minguar

O brasileiro médio vive em melhores condições de vida que os reis mais ricos que passaram pela história até o século XVIII. E isso se deve ao avanço da ciência, principalmente nos últimos 200 anos, como explica Élcio Abdalla, coordenador do projeto BINGO e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Os conhecimentos que levaram ao desenvolvimento de remédios e tratamentos que melhoram e prolongam a vida além de curar doenças, tecnologias que facilitaram a locomoção e nos levaram à Lua até ferramentas que otimizaram a produção de alimentos são consequências do desenvolvimento científico. A maioria surgiu e foi fomentada pelos centros de conhecimento e universidades.

“Não existe sociedade ou país que se desenvolveu sem ter investido massivamente em pesquisa científica e universidades, pois este não é um gasto, mas um investimento que retorna para a sociedade em todas as áreas. A vacina contra a Covid-19, que foi desenvolvida de forma urgente e tem salvado vidas todos os dias, é um excelente exemplo disso, mas a ciência vai além, está presente em nosso cotidiano, desde inovações e descobertas que tornam bens de consumo melhores e mais acessíveis, obras de engenharia que melhoram a mobilidade urbana e desenvolvimento agropecuário que torna a produção de alimentos mais barata e de melhor qualidade”.

Ou seja, afirma o especialista, investir em inovação e ciência é criar autonomia econômica e melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos. Abdalla sabe do que está falando. Além de professor da USP, ele é também coordenador de um dos projetos mais inovadores do país, o radiotelescópio BINGO, que será instalado no sertão paraibano. O projeto, que vem sendo financiado pela Fapesp e pela Finep, é inédito no país e conta com pesquisadores do Brasil, da China, África do Sul, Reino Unido, Coréia do Sul, Portugal e França.

O objetivo é explorar possibilidades na observação do universo a partir do céu brasileiro, conhecendo melhor o que está acima de nós – inclusive com informações estratégicas que podem beneficiar o governo. Além de trazer conhecimentos físicos e técnicos, os benefícios deste investimento vão muito além.

O que estamos perdendo?

Informação – Em um mundo cada vez mais capaz de gerar e processar informações, sabermos pouco sobre nossa geografia, a demografia e a saúde de nossa população, nos coloca, novamente, atrás na corrida econômica. O BINGO é um dos projetos mais inovadores neste aspecto que vai desvendar o nosso céu, área das menos conhecidas no país. “Saberemos não só aspectos técnicos, mas, por exemplo, o que anda circulando em cima de nós, como satélites, por exemplo”.

Desenvolvimento – Em português claro, o que mais perdemos é economicamente, nos colocando em desvantagem na disputa internacional. “Inovações criam produtos com alto valor agregado: o que significa mais retorno financeiro. O Brasil é um país ainda agrário, depende de commodities, ou seja, precisamos produzir muito mais para conseguirmos dinheiro. Se mantivermos esse ritmo, a diferença de riqueza entre nós e outras nações será cada vez maior”.

Cérebros – O fenômeno nunca foi tão grande como em 2020, pelo menos para os Estados Unidos. Segundo o relatório fiscal de 2020, o país registrou alta de 36% nos vistos de permanência concedidos a “profissionais excepcionais” brasileiros, um tipo de visto requisitado por médicos, enfermeiros ou fisioterapeutas – mas a categoria também inclui outras áreas deficitárias, como aviação ou engenharia.

Bem estar – Tecnologias podem baratear produtos, tornando-os acessíveis para a população mais pobre, desde eletrodomésticos até medicamentos, como vacinas e aparelhos de exame de imagem, por exemplo.

Mudança de paradigma no Brasil é necessária

Todas essas inovações correm o risco de se perder. Em plena pandemia, o governo federal investiu menos em 2020 do que em 2009: foi pouco mais de 17 bilhões. Para 2022, a perspectiva é muito pior. Como no Brasil praticamente toda a inovação e pesquisa vêm de universidades públicas, esse número praticamente trava a produção científica brasileira. Mas a sociedade deve responder a altura a essa realidade. As grandes corporações, fortunas e empresas privadas do país podem ser agentes fundamentais nessa mudança. A realidade dos Estados Unidos comprova que é importante uma mudança de paradigma.

“Não há cultura deste tipo de investimento no país. Há muita caridade, o que faz sentido, já que somos um país em desenvolvimento, com muita pobreza. Mas para que nós possamos sair dessas realidade de vez, o que se deve fazer é investir em projetos inovadores, centros de pesquisa, em nossas universidades, acadêmicos, para que possamos criar informação e conhecimento que vão fazer a diferença para nosso país e para o planeta. E produtos com alto valor agregado”, explica.

Uma prova é que os países que entenderam isso seguem na frente: os gastos globais com ciência aumentaram 19%. Estados Unidos e China, as duas maiores potências globais, representam 63% desse aumento. Os outros quatro países que mais investem em pesquisa proporcionalmente também estão na frente, não só em inovação, mas em bem estar social. Eles são Coreia do Sul e Alemanha, que investem quase 4% em pesquisa; e Japão e Estados Unidos, que repassam cerca de 3%.

Aqui a realidade é outra e a má notícia é que, pelo andar da carruagem, estamos cada vez pior. Em 2021, a ciência vem sobrevivendo com recursos mínimos. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) teve redução de 29%. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) recebeu apenas R$ 23,7 milhões, “uma quantia absolutamente irrisória”, diz o professor.

“É a pior situação que eu já vivi em toda a minha carreira acadêmica, de cerca de 40 anos. Inclusive, comparado a outras nações, eu nunca vi nada como o que estamos vivendo hoje. Temos muitos alunos e acadêmicos trabalhando de graça. A gente vem convivendo com autoridades, em todos os níveis governamentais, que remam totalmente contra a tendência mundial de valorizar a ciência e inovação, que inclusive a desmerecem com fake news. Vamos precisar de muitos anos, décadas, para nos recuperarmos desse estrago”.

As consequências vêm sendo sentidas dia a dia, desde defeitos técnicos, como na Plataforma Lattes, até o corte em agências de fomento. O Inovacred, programa da Finep de crédito para micro, pequenas e médias empresas inovadoras, concedia de R$ 350 milhões a R$ 400 milhões ao ano. Em 2020, esse volume caiu à metade.

(Foto: Divulgação)
(Foto: Divulgação)

Projeto inovador

O Bingo contribuirá com a visão do Hemisfério Sul para um trabalho sobre novos fenômenos físicos, o que já tem começado a acontecer em várias partes do planeta de modo complementar ao nosso. Entre outros projetos, temos, por exemplo, o Chime (Canadian Hydrogen Intensity Mapping Experiment) no Hemisfério Norte e outros projetos gigantescos na China (Tian Lai e FAST) e na África do Sul pelo Reino Unido e outros países (SKA). O chamado “setor escuro do Universo” estará no foco das descobertas. No sertão, longe da poluição eletromagnética, será possível saber mais sobre estruturas desconhecidas da galáxia e do Universo, sobre as Rajadas Rápidas de Rádio e sobre pulsares que ainda precisam de observação, além de perceber novos sinais do espaço.

Abdalla observa que “cerca de 95% do conteúdo energético do universo é completamente desconhecido, e o BINGO olhará para a distribuição detalhada da matéria conhecida para identificar os vínculos sobre o setor escuro do Universo”.

Conteúdo de colaborador*

Este canal é escrito por colaboradores diversos da Folha Geral. Cada conteúdo é de responsabilidade do autor.

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